Devoção
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07/02/2012
TRATADO DA VERDADEIRA DEVOÇÃO À SANTÍSSIMA VIRGEM
Por São Luís Maria Grignion de Montfort - 19ª edição – Editora Vozes – Petrópolis, 1992. - Quinta Parte
Por São Luís Maria Grignion de Montfort - 19ª edição – Editora Vozes – Petrópolis, 1992. - Quinta Parte
Artigo II
Pertencemos a Jesus Cristo e a Maria na qualidade de escravos
68. Segunda verdade. – Do que Jesus é para nós, concluímos que não nos pertencemos, como diz o apóstolo (1Cor 6, 19), e sim a ele, inteiramente, como seus membros e seus escravos, comprados que fomos por um preço infinitamente caro, o preço de seu sangue. Antes do batismo o demônio nos possuía como escravos, e o batismo nos transformou em escravos de Jesus Cristo e só devemos viver, trabalhar e morrer para produzir frutos para o homem-Deus (Rom 7, 4), glorificá-lo em nosso corpo e fazê-lo reinar em nossa alma, pois somos sua conquista, seu povo adquirido, sua herança. Pelo mesmo motivo o Espírito Santo nos compara24: 1º a árvores plantadas ao longo das águas da graça, nos campos da Igreja, árvores que devem dar seus frutos no tempo adequado; 2º aos galhos de uma videira de que Jesus Cristo é o tronco, e que devem produzir boas uvas; 3º a um rebanho cujo pastor é Jesus, e esse rebanho deve multiplicar-se e dar leite; 4º a uma boa terra de que Deus é o lavrador, e na qual a semente se multiplica, rendendo trinta, sessenta, cem vezes mais. Jesus amaldiçoou a figueira estéril (Mt 21, 19) e declarou condenado o servo inútil que não fizera valer o seu talento (Mt 25, 24-30). Tudo isso nos prova que Jesus Cristo quer receber alguns frutos de nossas mesquinhas pessoas: quer receber nossas boas obras, porque as boas obras lhe pertencem exclusivamente: “Creati in operibus bonis in Christo Iesu – Criados em Jesus Cristo para boas ações” (Ef 2, 10). Essas palavras do Espírito Santo mostram que Jesus Cristo é o único fim de todas as nossas boas obras, e que devemos servi-lo não somente como servidores assalariados, mas como escravos de amor. Explico-me.
69. Há duas maneiras, aqui na terra, de alguém pertencer a outrem e de depender de sua autoridade. São a simples servidão e a escravidão, donde a diferença que estabelecemos entre servo e escravo.
Pela servidão, comum entre os cristãos, um homem se põe a serviço de outro por um certo tempo, recebendo determinada quantia ou recompensa.
Pela escravidão, um homem depende inteiramente de outro durante toda a vida, e deve servir a seu senhor, sem esperar salário nem recompensa alguma, como um dos animais sobre que o dono tem direito de vida e morte.
70. Há três espécies de escravidão25: por natureza, por constrangimento e por livre vontade.
Por natureza, todas as criaturas são escravas de Deus: “Domini est terra et plenitudo eius” (Sl 23, 1). Os demônios e os réprobos são escravos por constrangimento; e os justos e os santos o são por livre e espontânea vontade. A escravidão voluntária é a mais perfeita, a mais gloriosa aos olhos de Deus, que olha o coração (1Rs 16, 7), que pede o coração (Prov 23, 26) e que é chamado o Deus do coração (Sl 72, 26) ou da vontade amorosa, porque, por esta escravidão, escolhe-se, sobre todas as coisas, a Deus e seu serviço, ainda quando não o obriga a natureza.
25) Cf. S. Agostinho, “Expositio cantici Magnificat” (circa médium). S. Tomás, Summa Theol. 3, q. 48, ª 4, corp. et resp. ad 1.
71. A diferença entre um servo e um escravo é total:
1º Um servo não dá a seu patrão tudo o que é, tudo o que possui ou pode adquirir por outrem ou por si mesmo; mas um escravo se dá integralmente a seu senhor, com tudo o que possui ou possa adquirir, sem nenhuma exceção.
2º O servo exige salário pelos serviços que presta a seu patrão; o escravo, porém, nada pode exigir, seja qual for a assiduidade, a habilidade, a força que empregue no trabalho.
3º O servo pode deixar o patrão quando quiser, ou ao menos quando expirar o tempo de serviço, mas o escravo não tem esse direito.
4º O patrão não tem sobre o servo direito algum de vida e de morte, de modo que, se o matasse como mata um se seus animais de carga, cometeria um homicídio; mas, pelas leis, o senhor tem sobre o escravo o poder de vida e morte26; de modo que pode vendê-lo a quem o quiser ou matá-lo, como, sem comparação, o faria a seu cavalo.
26) A lei natural, a lei mosaica e as leis modernas não reconhecem tal direito, a não ser por um mandato especial do soberano Senhor da vida e da morte. O bem-aventurado se coloca aqui simplesmente do ponto de vista do fato, conforme as leis civis dos países em que vigorava a escravidão (cf. Secret de Marie, p. 34). Abstraindo da moralidade do ato, seu fito é mostrar, por um exemplo, a total dependência de que fala.
5º O servo, enfim, só por algum tempo fica a serviço de um patrão, enquanto o escravo o é para sempre.
72. Só a escravidão, entre os homens, põe uma pessoa na posse e dependência completa de outra. Nada há, do mesmo modo, que mais absolutamente nos faça pertencer a Jesus Cristo e a sua Mãe Santíssima do que a escravidão voluntária, conforme o exemplo do próprio Jesus Cristo, que, por nosso amor, tomou a forma de escravo: “Formam servi accipiens” (Filip 2, 7), e da Santíssima Virgem, que se declarou a escrava do Senhor (Lc 1, 38). O apóstolo honra-se várias vezes em suas epístolas com o título de “servus Christi”.27 A Sagrada Escritura chama muitas vezes os cristãos de “servi Christi”, e esta palavras “servus”, conforme a observação acertada de um grande homem28, significava, outrora, apenas escravo, pois não existiam servos como os de hoje, e os ricos só eram servidos por escravos ou libertos. E para que não haja a menor dúvida de que somos escravos de Jesus Cristo, o Concílio de Trento usa a expressão inequívoca “mancipia Christi” e no-lo aplica: escravos de Jesus Cristo.29 Isto posto:
27) Cf. Rom 1, 1; Gal 1, 10; Filip 1, 1; Tito 1, 1.
28) Henri-Marie Boudon, arcediago d’Evreux, em seu livro: “La sainte esclavage de l’admirable Mère de Dieu’, cap. II.
29) Catec. Rom., parte I, cap. 3: De secundo Symboli articulo (in fine).
73. Digo que devemos pertencer a Jesus Cristo e servi-lo, não só como servos mercenários, mas como escravos amorosos, que, por efeito de um grande amor, se dedicam a servi-lo como escravos, pela honra exclusiva de lhe pertencer. Antes do batismo, éramos escravos do demônio; o batismo nos fez escravos de Jesus Cristo. Importa, pois, que os cristãos sejam escravos ou do demônio ou de Jesus Cristo.
74. O que digo absolutamente de Jesus Cristo, digo-o também da Virgem Maria, pois Jesus Cristo, escolhendo-a para sua companheira inseparável na vida, na morte, na glória, em seu poder no céu e na terra, deu-lhe pela graça, relativamente à sua majestade, os mesmos direitos e privilégios que ele possui por natureza. “Quidquid Deo convenit per naturam, Mariae convenit per gratiam... – Tudo que convém a Deus pela natureza, convém a Maria pela graça”, dizem os santos. Assim, conforme este ensinamento, pois que ambos têm a mesma vontade e o mesmo poder, têm também os mesmos súditos, servos e escravos.30
30) Oportebat... Dei Matrem ea quae Filii essent possidere (São João Damasc., Sermo 2 in Dormitione B. M.).
75. Podemos, portanto, seguindo a opinião dos santos e de muitos doutos, dizer-nos e fazer-nos escravos da Santíssima Virgem, para deste modo nos tornarmos mais perfeitamente escravos de Jesus Cristo.29 A Santíssima Virgem é o meio de que Nosso Senhor se serviu para vir até nós; e é o meio de que nos devemos servir para ir a ele.30 Bem diferente é ela das outras criaturas, as quais, se a elas nos apegarmos, poderão antes afastar-nos que aproximar-nos de Deus. A mais forte inclinação de Maria é unir-nos a Jesus Cristo, seu divino Filho; e a mais forte inclinação do Filho é que vamos a ele por meio de sua Mãe Santíssima. E isto é para ele tanta honra e prazer, como seria para um rei honra e prazer, se alguém, para tornar-se mais perfeitamente seu escravo, se fizesse escravo da rainha. Eis por que os Santos Padres, e São Boaventura com eles, dizem que a Santíssima Virgem é o caminho para chegar a Nosso Senhor: “Via veniendi ad Christum est appropinquare ad illam”.
31) Ita serviam Matri tuae, ut ex hoc ipse me probes servisse tibi (S. Ildefonso: de virginitate perpetua B. M., cap. XII).
32) Per ipsam Deus descendit ad terras, ut per ipsam homines ascendere mereantur ad caelos (S. Agostinho – Sermo 113 in Nativit. Domini). Ver também S. Boaventura: Expositio in Lc, cap. I, n. 38. Pio X, Encíclica “Ad diem illum”.
33) Psalterium maius B. M., Sl 117.
76. Além disso, se a Virgem Santíssima, como já disse (v. nº 38), é a rainha e soberana do céu e da terra – “Imperio Dei omnia subiciuntur et Deus”32, dizem Santo Anselmo, São Bernardo, São Boaventura – não possui ela tantos súditos e escravos quantas criaturas existem?33 Não é razoável que, entre tantos escravos por constrangimento, haja alguns por amor, que de boa vontade e na qualidade de escravos, escolham Maria para sua soberana? Pois então os homens e os demônios terão seus escravos voluntários e Maria não há de tê-los? Seria desonra para um rei se a rainha, sua companheira, não possuísse escravos sobre os quais tivesse direito de vida e morte34, pois a honra e o poder do rei são a honra e o poder da rainha; e pode-se acreditar que Nosso Senhor, o melhor de todos os filhos, que deu a sua Mãe Santíssima parte de todo o seu poder, considere um mal ter ela escravos?35 Terá ele menos respeito e amor a sua Mãe do que teve Assuero a Éster e Salomão a betsabé? Quem ousaria dizê-lo ou pensá-lo sequer?
33) “Ao poder de Deus tudo é submisso, até a Virgem; ao poder da Virgem tudo é submisso, até Deus”.
34) “Res quippe omnes conditas Filius Matri mancipavit”. S. João Damasceno. Sermo 2 in Dormitione B. M. – São Boaventura: Ancilla Dominae Mariae est quaelibet anima Fidelis, imo etiam Ecclesia universalis (Speculum B. M. M., lect. III § 5).
35) V. nota ao n. 71.
36) Christianiorum memento, qui servi tui sunt. São Germano de Constatinopla: Orat. hist. In Dormitione Deiparae.
77. Mas onde me leva minha pena? Por que me detenho aqui a provar uma coisa tão evidente? Se alguém recusa confessar-se escravo de Maria, que importa? Que se faça e diga escravo de Jesus Cristo. É o mesmo que ser escravo da Santíssima Virgem, pois Jesus é o fruto e a glória de Maria. e isto se faz perfeitamente pela devoção de que falaremos a seguir.36
37) Para explicação da doutrina exposta neste artigo II, ver: A. Lhomeau: “A vida espiritual do B. L. M. Grignion de Montfort”, 1ª parte, cap. IV.
Artigo III
Devemos despojar-nos do que há de mau em nós
78. Terceira verdade. – Nossas melhores ações são ordinariamente manchadas e corrompidas pelo fundo de maldade que há em nós. Quando se despeja água limpa e clara em uma vasilha suja, que cheira mal, ou quando se põe vinho em uma pipa cujo interior está azedado por outro vinho que aí antes se depositara, a água límpida e o vinho bom adquirem facilmente o mau cheiro e o azedume dos recipientes. Do mesmo modo, quando Deus põe no vaso de nossa alma, corrompido pelo pecado original e pelo pecado atual, suas graças e orvalhos celestiais ou o vinho delicioso de seu amor, estes dons divinos ficam ordinariamente estragados ou manchados pelo mau germe e mau fundo que o pecado deixou em nós; nossas ações, até as mais sublimes virtudes, disto se ressentem. É, portanto, de grande importância, para adquirir a perfeição, que só se consegue pela união com Jesus Cristo, despojar-nos de tudo que de mau existe em nós. Do contrário, Nosso Senhor, que é infinitamente puro e odeia infinitamente a menor mancha na alma, nos repelirá e de modo algum se unirá a nós.
79. Para despojar-nos de nós mesmos, é preciso conhecer primeiramente e bem, pela luz do Espírito Santo, nosso fundo de maldade, nossa incapacidade para todo bem, nossa fraqueza em todas as coisas, nossa inconstância em todo tempo, nossa indignidade de toda graça e nossa iniqüidade em todo lugar. O pecado de nossos primeiros pais nos estragou completamente, nos azedou, inchou e corrompeu, como o fermento azeda, incha e corrompe a massa em que é posto. Os pecados atuais que cometemos, sejam mortais ou veniais, perdoados que estejam, aumentam em nós a concupiscência, a fraqueza, a inconstância e a corrupção, deixando maus traços em nossa alma.
Nosso corpo é tão corrompido, que o Espírito Santo (Rom 6, 6; Sl 50, 7) o chama corpo do pecado, concebido no pecado, nutrido no pecado, e só apto para o pecado, corpo sujeito a mil e mil males, que se corrompe sempre mais cada dia, e que só engendra a doença, os vermes, a corrupção.
Nossa alma, unida ao corpo, tornou-se tão carnal, que é chamada carne: “Toda a carne tinha corrompido o seu caminho” (Gn 6, 12). Toda a nossa herança é orgulho e cegueira no espírito, endurecimento no coração, fraqueza e inconstância na alma, concupiscência, paixões revoltadas e doenças no corpo. Somos, naturalmente, mais orgulhosos que os pavões, mais apegados à terra que os sapos, mais feios que os bodes, mais invejosos que as serpentes, mais glutões que os porcos, mais coléricos que os tigres e mais preguiçosos que as tartarugas; mais fracos que os caniços, e mais inconstantes do que um catavento. Tudo que temos em nosso íntimo é nada e pecado, e só merecemos a ira de Deus e o inferno eterno.
38) S. Luís Maria fala de nosso nada e de nossa impotência na ordem sobrenatural, sem o socorro da graça (v. com efeito, mais adiante o n. 83: Nosso íntimo..., tão corrompido, se nós apoiamos em nossos próprios trabalhos... para chegar a Deus...).
80. Depois disto, por que admirar-se de ter Nosso Senhor dito que quem quisesse segui-lo devia renunciar a si mesmo e odiar a própria alma; que aquele que amasse sua alma a perderia e quem a odiasse se salvaria? (Jo 12, 25). A Sabedoria infinita, que não dá ordens sem motivo, só ordena que nos odiemos porque somos grandemente dignos de ódio: só Deus é digno de amor, enquanto nada há mais digno de ódio do que nós.
81. Em segundo lugar, para despojar-nos de nós mesmos, é preciso que todos os dias morramos para nós, isto é, importa renunciarmos às operações das faculdades da alma e dos sentidos do corpo, precisamos ver como se não víssemos, ouvir como se não ouvíssemos, servir-nos das coisas deste mundo como se não o fizéssemos (cf. 1Cor 7, 29-31), o que São Paulo chama morrer todos os dias: “Quotidie morior” (1Cor 15, 31). “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só, e não produz fruto apreciável: Nizi granum frumenti cadens in terram mortuum fuerit, ipsum solum manet” (Jo 12, 24-25). Se não morrermos a nós mesmos, e se as mais santas devoções não nos levarem a esta morte necessária e fecunda, não produziremos fruto que valha, nossas devoções serão inúteis, todas as nossas obras de justiça ficarão manchadas por nosso amor-próprio e nossa própria vontade, e Deus abominará os maiores sacrifícios e as melhores ações que possamos fazer. Na hora da nossa morte, teremos as mãos vazias de virtudes e méritos, e não brilhará em nós a menor centelha do puro amor, que só é comunicado às almas mortas a si mesmas, almas cuja vida está oculta com Jesus Cristo em Deus (Col 3, 3).
82. Em terceiro lugar, é preciso escolher entre todas as devoções à Santíssima Virgem, a que nos leva com mais certeza a este aniquilamento do próprio eu. Esta será a devoção melhor e mais santificante, pois é mister reconhecer que nem tudo que luz é ouro, nem tudo que é doce é mel, e nem tudo que é fácil de fazer e praticar é o mais santificante. Do mesmo modo que a natureza tem segredos para fazer em pouco tempo, sem muitos gastos e com facilidade, certas operações naturais, há segredos, na ordem da graça, pelos quais se fazem, em pouco tempo, com doçura e facilidade, operações sobrenaturais, como despojar-nos de nós mesmos, encher-nos de Deus, e tornar-nos perfeitos.
A prática que quero revelar é um desses segredos da graça, desconhecido da maior parte dos cristãos, conhecidos de poucos devotos, praticado e apreciado por um número bem diminuto. Antes de abordar esta prática, apresento uma quarta verdade que é conseqüência da terceira.
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