Totus Tuus Mariae




Devoção
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07/02/2012
TRATADO DA VERDADEIRA DEVOÇÃO À SANTÍSSIMA VIRGEM
Por São Luís Maria Grignion de Montfort - 19ª edição – Editora Vozes – Petrópolis, 1992. - Décima Parte




Por São Luís Maria Grignion de Montfort - 19ª edição – Editora Vozes – Petrópolis, 1992. - Décima Parte

Maria Santíssima
Artigo VI
Esta devoção dá uma grande liberdade interior
 
169. Sexto motivo. Esta prática de devoção dá, às pessoas que a praticam fielmente, uma grande liberdade interior, que é a liberdade dos filhos de Deus (cf. Rm 8,21). Visto que, por esta devoção, nos tornamos escravos de Jesus Cristo, consagrando-nos todo a ele nesta condição, este bom Mestre, em recompensa do cativeiro por amor a que nos submetemos, tira, primeiro, à alma todo escrúpulo e temor servil, que a constrangem, escravizam e perturbam; segundo, alarga o coração por uma santa confiança em Deus, fazendo-o considerá-lo como Pai; terceiro, inspira-lhe um amor terno e filial.
170. Sem me deter em amontoar razões para provar esta verdade, contento-me de citar uma passagem histórica que li na vida da Madre Inês de Jesus, religiosa jacobina70 do convento de Langeac em Auvergne, a qual morreu em odor de santidade nesse mesmo lugar, em 1634. Não tinha ela ainda sete anos, quando, uma ocasião, sofrendo tormentos de espírito, ouviu uma voz que lhe disse que, se ela quisesse livrar-se de todos os seus sofrimentos e ser protegida contra todos os seus inimigos, se fizesse quanto antes escrava de Jesus e de sua Mãe Santíssima. Mal chegou em casa, entregou-se inteiramente a Jesus e Maria, como lhe aconselhara a voz, embora não soubesse antes em que consistia esta devoção; e, tendo encontrado uma corrente de ferro, cingiu-se com ela os rins e a usou até à morte. Depois desse ato todas as suas penas e escrúpulos cessaram, e ela se achou numa grande paz e bem-estar de coração, e isto a levou a ensinar esta devoção a muitas outras pessoas, que fizeram grandes progressos, entre outros, a M. Olier, que instituiu o seminário de São Sulpício, e a muitos outros padres e eclesiásticos do mesmo seminário... Um dia a Santíssima Virgem lhe apareceu e lhe pôs ao pescoço uma cadeia de ouro para lhe testemunhar a alegria de tê-la como escrava de seu Filho e sua; e Santa Cecília, que acompanhava a Santíssima Virgem, lhe disse: Felizes os fiéis escravos da Rainha do céu, pois gozarão da verdadeira liberdade: “Tibi servire libertas”.
70) Até a Revolução Francesa os religiosos da Ordem de São Domingos eram chamados jacobinos, do nome da igreja de Saint-Jacques (São Tiago) em Paris, perto da qual a Ordem se estabeleceu.
 
Artigo VII
Nosso próximo aufere grandes bens desta devoção
 
171. Sétimo motivo. O que pode ainda levar-nos a abraçar esta devoção são os grandes bens que por ela receberá nosso próximo. Pois, praticando-a, exercemos para com ela a caridade de uma maneira eminente, já que lhe damos pelas mãos de Maria o que temos de mais caro, isto é, o valor satisfatório e impetratório de todas as nossas boas obras, sem excetuar o menor dos bons pensamentos e o mais leve sofrimento; consentimos em que tudo que adquirimos, e que havemos de adquirir de satisfações, seja, até à hora da morte, empregado conforme à vontade da Santíssima Virgem, à conversão dos pecadores ou à libertação das almas do purgatório.
Não é isto amar perfeitamente o próximo? Não é este o verdadeiro discípulo de Jesus Cristo, que se reconhece pela caridade? (Jo 13, 35). Não é este o meio de converter os pecadores, sem temer a vaidade, e de livrar as almas do purgatório, sem fazer quase nada mais do que aquilo a que cada um está obrigado em seu estado?
172. Para conhecer a excelência deste motivo, seria preciso conhecer o bem que é converter um pecador ou livrar uma alma do purgatório: bem infinito, maior que criar o céu e a terra71, pois que é dar a uma alma a posse de Deus. Mesmo que, por esta prática, não se livrasse mais que uma alma do purgatório, ou se convertesse apenas um pecador, não seria isto bastante para induzir todo homem verdadeiramente caridoso a abraçá-la?
71) S. Agost., Tract. 72 in Ioann., a medio.
É preciso notar ainda que nossas boas obras, passando pelas mãos de Maria, recebem um aumento de pureza, e, por conseguinte, de mérito e de valor satisfatório e impetratório; por isso elas se tornam muito mais capazes de aliviar os pecadores do purgatório e de converter os pecadores do que se não passassem pelas mãos virginais e liberais de Maria. O pouco que damos pela Santíssima Virgem, sem vontade própria, e por uma desinteressada caridade, tornar-se, em verdade, bem mais potente para abrandar a cólera de Deus e atrair sua misericórdia; e há de verificar-se à hora da morte que uma pessoa fiel a esta prática terá, por este meio, libertado inúmeras almas do purgatório, e convertido muitos pecadores, conquanto só tenha feito as ações comuns e ordinárias do seu estado. Que alegria haverá em seu julgamento! Que glória na eternidade!
 
Artigo VIII
Esta devoção é um meio admirável de perseverança
 
173. Oitavo motivo. Finalmente, o motivo mais poderoso, que, de certo modo, nos induz a esta devoção à Santíssima Virgem, é constituir um meio admirável para perseverar na virtude e ser fiel. Como se explica que a maior parte das conversões dos pecadores não seja durável? Donde vem a facilidade de recair no pecado? Por que a maior parte dos justos, ao invés de avançar de virtude em virtude e adquirir novas graças, perdem muitas vezes o pouco de virtudes e graças que tinham? Esta infelicidade provém, como já o demonstrei (v. nn. 87-89), de que o homem, sendo tão corrompido, tão fraco e tão inconstante, fia-se em si próprio, e crê-se capaz de guardar o tesouro de suas graças, virtudes e méritos.
 
Por esta devoção confiamos à Santíssima Virgem, fiel por excelência, tudo o que possuímos; tomamo-la por depositária universal de todos os bens da natureza e da graça. É em sua fidelidade que confiamos, no seu poder que nos apoiamos, em sua misericórdia e caridade que nos baseamos para que ela conserve e aumente nossas virtudes e méritos, a despeito do demônio, do mundo e da carne, que envidam todos os esforços para no-los arrebatar. Dizemos-lhe como um bom filho a sua mãe: “Depositum custodi” (1Tm 6, 20), isto é, minha boa Mãe e Soberana, reconheço que até ao presente muito mais graças tenho de Deus recebido por vossa intercessão, do que mereço, e minha funesta experiência me ensina que bem frágil é o vaso em que guardo esse tesouro, e que por demais fraco e miserável eu sou, para conservá-lo em mim: “adolescentulus sum ergo et contemptus” (Sl 118, 141); recebei em depósito tudo o que possuo, e conservai-mo por vossa fidelidade e vosso poder. Se me guardardes, nada perderei; se me sustentardes, não cairei; se me protegerdes, estarei a salvo de meus inimigos.
174. É o que diz S. Bernardo para inspirar-nos esta prática: “Enquanto Maria vos sustenta, não caís; enquanto vos protege, não temeis; enquanto vos conduz, não vos fatigais; e, sendo-vos propícia, chegareis ao porto da salvação: Ipsa tenente, non corruis; ipsa protegente, nom metuis; ipsa duce, nom fatigareis; ipsa propitia, pervenis”72 O mesmo parece dizer São Boaventura em termos ainda mais claros: A Santíssima Virgem, diz ele, está não só detida na plenitude dos santos, mas também guarda e detém os santos na plenitude para que esta plenitude não diminua; impede que suas virtudes se dissipem, que seus méritos pereçam, que se percam sua graças, que os prejudiquem os demônios; impede, por fim, que Nosso Senhor castigue os pecadores: “Virgo nom solum in plenitudine sanctorum detinetur, sed etiam in plenitudine sanctos detinet, ne plenitudo minuatur; detinet virtutes ne fugiant; detinet merita ne pereant; detinet gratias ne effluant; detinet daemones ne noceant; detinet Filium ne peccatores percutiat”.73
72) Homilia 2 super “Missus est” n. 17.
73) “Speculum B. V.”, lect. VII, § 6.
175. A Santíssima Virgem é a Virgem fiel que, por sua fidelidade a Deus, repara as perdas que Eva infiel causou por sua infidelidade, e que obtém de Deus a fidelidade e a perseverança para aqueles que a ela se apegam. Por isso um santo a compara à âncora firme, porque os retém e impede de soçobrar no m ar agitado deste mundo, onde tantas pessoas naufragam por não se firmarem nesta âncora inabalável. “Prendemos, diz ele, as almas à vossa esperança, como a uma âncora firme: Animas ad spem tuam sicut ad firmam anchoram alligamus”.74 Foi a ela que os santos mais se agarraram, e prenderam os outros, com o fito de perseverar na virtude. Felizes, mil vezes felizes os cristãos que agora se apegam fiel e inteiramente a ela, como a uma âncora firme. Os arrancos da tempestade deste mundo não os farão submergir, nem perder os tesouros celestes. Bem-aventurados os que nela buscam abrigo como na arca de Noé. As águas do dilúvio de pecados, que afogam tanta gente, não lhes farão mal, pois: “Qui operantur in me non peccabunt” – os que se guiam por mim não pecarão (Ecli 24, 30), diz ela com a Sabedoria. Bem-aventurados os filhos infiéis da desgraçada Eva que se apegam à Mãe e Virgem fiel, que permanecem sempre fiéis e que não faltam jamais à sua palavra: “Fidelis permanet, se ipsam negare non potest”75, e que ama aqueles que a amam: “Ego diligentes me diligo” (Prov 8, 17), não só um amor afetivo, mas um amor efetivo e eficaz, impedindo-os, por uma grande abundância de graças, de recuar na virtude, ou de cair no caminho, perdendo a graça de seu Filho.
74) S. João Damasceno, “Sermo 1 in Dormitione B. M. V.”
75) Aplicação à Santíssima Virgem das palavras de São Paulo: 2Tm 2, 13.
 
176. Esta boa Mãe recebe sempre, por pura caridade, tudo que lhe entregamos em depósito; e, desde que ela o recebeu como depositária, é obrigada por justiça, em virtude do contrato de depósito, a guardá-lo para nós; do mesmo modo que uma pessoa, a quem eu confiasse mil escudos, seria obrigada a guardá-los para mim, de tal modo que se, por sua negligência, meus mil escudos se perdessem seria ela, com justiça, a responsável. Mas isto não acontece, pois Maria, a virgem fiel, jamais deixaria perder-se, por sua negligência, o que lhe tivéssemos confiado. Antes passarão o céu e a terra do que ela ser negligente e infiel para com aqueles que dela se fiam.
177. Pobres filhos de Maria! extrema é vossa fraqueza, grande, vossa inconstância, viciado, o vosso íntimo! Sois, eu o confesso, da mesma massa corrompida que os filhos de Adão e Eva; mas não percais por isso a coragem; consolai-vos, regozijai-vos: eis o segredo que vos ensino, segredo desconhecido de quase todos os cristãos, até dos mais devotos.
Não deixeis vosso ouro e vossa prata nos cofres, já forçados pelo espírito maligno que vos roubou, cofres por demais exíguos e fracos e velhos para conter um tesouro tão grande e tão precioso. Não depositeis a água pura e cristalina da fonte em vossos vasos machados e infeccionados pelo pecado. Pode ser que o pecado aí já não esteja, mas o odor permanece ainda e a água ficará contaminada. Não despejeis vosso vinho fino em velhos tonéis que já contiveram vinho ordinário: ficará estragado e o perdereis.
178. Embora me entendais, almas predestinadas, falo mais abertamente. Não confieis o ouro de vossa caridade, a prata de vossa pureza, as águas das graças celestes, nem os vinhos de vossos méritos e virtudes a um saco roto, a um cofre velho e quebrado, a um vaso contaminado e corrompido, como vós sois; porque sereis pilhados pelos ladrões, isto é, os demônios, que buscam e espreitam, noite e dia, o momento próprio para o ataque; estragareis, com o mau odor do amor-próprio, da confiança própria e da vontade própria, tudo o que Deus vos dá de mais puro.
Depositai, derramai no seio e no coração de Maria todos os vossos tesouros, todas as vossas graças e virtudes. Maria é um vaso espiritual, um vaso honorífico, um vaso insigne de devoção: “vas spirituale, vas honorabile, vas insigne devotionis”. Depois que aí se encerrou o próprio Deus em pessoa, com todas as suas perfeições, este vaso tornou-se todo espiritual, e a morada espiritual das almas mais espirituais. Tornou-se honorável, e o trono de honra dos maiores príncipes da eternidade. Tornou-se insigne na devoção e a morada dos mais ilustres em doçura, em graças e virtudes. Tornou-se, enfim, rico como uma casa de ouro, forte como a torre de Davi, puro como uma torre de marfim.
179. Oh! quão feliz é o homem que tudo deu a Maria e que nela confia em tudo e por tudo. Ele é todo de Maria e Maria é toda dele. Pode dizer afoitamente com David: “Haec facta est mihi: Maria foi feita para mim” (Sl 118, 56); ou com o discípulo amado: “Accepi eam in mea” (Jo 19, 27) – Eu a tomei como toda a minha riqueza; ou com o próprio Jesus Cristo: “Omnia mea tua sunt, et omnia tua mea sunt: Todas as minhas coisas são tuas, e as tuas são minhas” (Jo 17, 10).
180. Se algum crítico, ao ler isto, achar que falo exageradamente e por excesso de devoção, infeliz dele, pois não me compreende, ou por ser um homem carnal que não aprecia as coisas do espírito, ou por ser do mundo que não pode receber o Espírito Santo, ou por ser orgulhoso e crítico, que condena e despreza o que não entende. As almas, porém, que não nasceram do sangue nem da vontade da carne (Jo 1, 13) mas de Deus e de Maria, me compreendem e apreciam; e é para elas, afinal, que eu escrevo.
 
181. Digo, entretanto, para uns e outros, voltando ao assunto interrompido, que Maria Santíssima, porque é a mais honesta e mais generosa de todas as puras criaturas, não se deixa vencer jamais em amor e liberalidade. E por um ovo, diz um santo homem ela dá um boi, isto é, por pouco que lhe demos ela dá mais do que recebeu de Deus; e, por conseguinte, se uma alma se lhe entrega sem reserva, se nela depositamos toda a nossa confiança, trabalhando de nosso lado em adquirir as virtudes e domar as paixões.
182. Que os fiéis servidores de Maria digam, pois, ousadamente com São João Damasceno: “Tendo confiança em vós, ó Mãe de Deus, serei salvo; tendo vossa proteção, não temerei; com vosso auxílio, combaterei os meus inimigos e os porei em fuga; pois vossa devoção é uma arma de salvação que Deus dá a quem quer salvar: Spem tuam habens, o Deipara, sevabor; defensionem tuam possidens, non timebo; persequar inimicos meos et in fugam vertam, habens protectionem tuam et auxilium tuum; nam tibi devotum esse est arma quaedam salutis quae Deus his dat quos vult salvos fieri” (Sermo de Annunc.).
 
Capítulo VI
Figura bíblica desta perfeita devoção: Rebeca e Jacó
 
183. De todas as verdades que acabo de descrever em relação à Santíssima Virgem, o Espírito Santo nos apresenta, na Sagrada Escritura (Gn 27), uma figura admirável na história de Jacó, o qual recebeu a bênção de Isaac, graças à solicitude e engenho de sua mãe Rebeca.
Ei-la tal como conta o Espírito Santo. Em seguida ajuntarei a explicação.
 
Artigo I
Rebeca e Jacó
§ I. História de Jacó.
 
184. Esaú vendera a Jacó, seu direito de primogenitura. Anos depois, Rebeca, mãe dos dois irmãos, assegurou a Jacó, – que ela amava ternamente, – as vantagens daquele privilégio, empregando, para isto, uma astúcia santa e cheia de mistério. Pois Isaac, sentindo-se extremamente velho, quis, antes de morrer, abençoar seus filhos, e, chamando Esaú, o preferido, ordenou-lhe que fosse caçar algo para ele comer. Depois o abençoaria. Rebeca, prontamente, pôs Jacó ao corrente do que se passava, e disse-lhe que fosse buscar dois cabritos no rebanho. Assim que ele lhos trouxe, ela os preparou do modo que Isaac mais gostava. Em seguida, com as vestes de Esaú, que ela guardava, vestiu Jacó e com as peles dos cabritos envolveu-lhe o pescoço e as mãos, a fim de que Isaac, que não podia ver, acreditasse, tateando-lhe as mãos, que fosse Esaú, embora ouvindo a voz de Jacó. Isaac, com efeito, ficou surpreso ao ouvir a voz que ele reconhecia como de Jacó, mas, fazendo-o aproximar-se e tateando-lhe os pelos que cobriam as mãos do filho, murmurou: Em verdade a voz é de Jacó, mas as mãos são de Esaú. E, convencido, comeu. Em seguida, ao beijar Jacó sentiu a fragrância das roupas de Esaú, o que acabou por dissipar-lhe as dúvidas. Abençoou-o, então, e desejou-lhe o orvalho do céu e a fecundidade da terra; estabeleceu-o senhor de todos os seus irmãos, e terminou a bênção com estas palavras: “Aquele que te amaldiçoar seja amaldiçoado, e aquele que te abençoar seja cumulado de bênçãos”.
Apenas Isaac acabara de falar, entrou Esaú trazendo um guisado da caça que abatera, e o apresentou ao pai, pedindo-lhe que comesse e em seguida o abençoasse. O santo patriarca ficou extremamente surpreendido, ao ficar ciente do engano, mas, longe de retratar o que fizera, confirmou-o, pois reconhecia no fato, evidentemente, o dedo de Deus. Então Esaú, como observa a Sagrada Escritura, gritou com grande clamor, e acusando em altas vozes o embuste do seu irmão, perguntou ao pai se ele não tinha outra bênção. Neste ponto, notam os Santos Padres, ele era a imagem dos que facilmente conciliam Deus com o mundo, querendo gozar ao mesmo tempo as consolações do céu e as da terra. Isaac, comovido pelos gritos de Esaú, abençoou-o, enfim, mas a bênção que lhe deu foi uma bênção terrena, sujeitando-o ao irmão. Por isso Esaú concebeu um ódio tão profundo contra Jacó que, para matá-lo, só esperava a morte do pai. E Jacó não teria podido evitar a morte, se sua extremosa mãe Rebeca não o protegesse com sua habilidade e os bons conselhos que lhe deu e que ele seguiu.
 
§ II. Interpretação da história de Jacó.
 
185. Antes de explicar esta história tão bela, é preciso notar que, conforme todos os Santos Padres e intérpretes da Sagrada Escritura, Jacó é figura de Jesus Cristo e dos predestinados, enquanto Esaú é figura dos réprobos; basta, apenas, examinar a atitude de um e de outro para verificá-lo.
1º Esaú, figura dos réprobos
1º Esaú, o mais velho, era forte e robusto de corpo, destro e habilidoso no manejo do arco e na arte da caça.
2º Quase não parava em casa, e, confiante em sua força e destreza, só trabalhava fora, ao ar livre.
3º Pouco se incomodava de agradar a sua mãe Rebeca, e nada fazia por ela.
4º Era guloso e gostava tanto de satisfazer o paladar, que chegou a vender seu direito de progenitura por um prato de lentilhas.
5º Estava, como Caim, cheio de inveja de seu irmão Jacó, e o perseguia sem tréguas.
186. Eis a conduta dos réprobos, todos os dias:
1º Fiam-se em sua força e indústria nos negócios temporais; são muito fortes, muito hábeis e esclarecidos para as coisas da terra, mas extremamente fracos e ignorantes nas coisas do céu: “In terrenis fortes, in caelestibus debiles”. Por isso:
187. 2º Não se demoram ou se demoram muito pouco em sua própria casa, quer dizer no seu interior, que é a casa interior e essencial dada por Deus a cada homem para aí morar, conforme seu exemplo, pois Deus mora sempre em sua casa. Os réprobos não amam o retiro, nem a espiritualidade, nem a devoção interior e chamam de espírito acanhados, carolas e selvagens aqueles que são espirituais e retirados do mundo, e que trabalham mais no interior do que fora.
188. 3º Os réprobos não se preocupam de modo algum com a devoção à Santíssima Virgem, a Mãe dos predestinados. É verdade que não a odeiam formalmente, fazem-lhe às vezes um elogio, dizem que a amam, praticam até alguma devoção em sua honra, mas, de resto, não suportariam vê-la amada ternamente, porque não têm para ela as ternuras de Jacó. Acham motivo de censura nas práticas de devoção, a que se entregam os bons filhos e servos da Santíssima Virgem para obter sua afeição, na certeza de que esta devoção lhes é necessária à salvação, e acham mais que, desde que não odeiam formalmente a Santíssima Virgem, e que não desprezam abertamente sua devoção, isso é bastante e já ganharam as boas graças da Santíssima Virgem e são seus servos, ao recitarem ou resmungarem algumas orações em sua honra, sem a menor ternura por ela nem emenda para eles.
189. 4º Esses réprobos vendem seu direito de primogenitura, isto é, os gozos do paraíso, por um prato de lentilhas, os prazeres da terra. Riem, bebem, comem, divertem-se, jogam, dançam, etc..., sem a mínima preocupação, como Esaú, de se tornarem dignos da bênção do Pai celeste. Em três palavras, eles só pensam na terra, só amam a terra, só falam e agem pela terra e pelos prazeres terrenos, vendendo, por um instante de prazer, por uma vã fumaça de honra, e por um pedaço de matéria amarela ou branca, a graça batismal, sua veste de inocência, sua celestial herança.
190. 5º Os réprobos, finalmente, em segredo ou às claras, odeiam e perseguem diariamente os predestinados. Prejudicam-nos quanto podem, desprezam-nos, roubam-nos, enganam-nos, empobrecem-nos, expulsam-nos, reduzem-nos a pó; enquanto eles mesmos fazem fortuna, gozam seus prazeres, vivem em situação esplêndida, enriquecem, se engrandecem e levam vida folgada.
2º Jacó, figura dos predestinados
191. 1º Jacó, o caçula, era de compleição franzina, meigo e sossegado. Permanecia em casa o mais possível, para ganhar as graças de sua Mãe Rebeca, que o amava ternamente. Se saía de casa, não o fazia por vontade própria, nem por confiança em sua própria habilidade, mas para obedecer a sua mãe.
192. 2º Amava e honrava sua mãe: por isso ficava em casa junto dela. Seu maior contentamento era vê-la; evitava tudo que pudesse desagradar-lhe e fazia tudo que imaginava agradar-lhe. Tudo isso concorria para aumentar em Rebeca o amor que dedicava ao filho.
193. 3º Em todas as coisas ele era submisso a sua mãe, obedecia-lhe inteiramente em tudo, com obediência pronta, sem tardanças, e amorosa, sem queixas; ao menor sinal da vontade materna, o pequeno Jacó corria e trabalhava. Acreditava piamente, sem discutir, em tudo que a mãe lhe dizia: por exemplo, quando Rebeca o mandou buscar os dois cabritos, e ele os trouxe a fim de ela os preparar para Isaac, Jacó não replicou nem observou que bastava um para satisfazer o apetite de um só homem, mas, sem discernir, fez exatamente como ela mandou.
194. 4º Ele depositava uma confiança sem limites em sua querida mãe; como não contava absolutamente com sua própria experiência, apoiava-se unicamente na proteção e nos desvelos maternos. Chamava por ela em todas as suas necessidades e consultava-a em todas as suas dúvidas: por exemplo, quando lhe perguntou se, em vez da bênção, não receberia a maldição de seu pai, creu e confiou na resposta que ela lhe deu de que tomaria sobre si a maldição.
195. 5º Ele imitava, enfim, na medida de sua capacidade, as virtudes que via em sua mãe; e parece que uma das razões por que ele permanecia em casa, tão sedentário, é que procurava imitar sua virtuosa mãe, e afastar-se de más companhias, que corrompem os costumes. Por tal motivo tornou-se digno de receber a dupla bênção de seu querido pai.
196. Eis também a conduta diária dos predestinados:
1º Vivem em casa, sedentáriamente, com sua mãe, quer dizer, amam o recolhimento, são interiores, e se aplicam à oração, mas conforme o exemplo e a companhia de sua Mãe, a Santíssima Virgem, cuja glória está toda no interior e que, durante a vida inteira, tanto amou o retiro e a oração. É verdade que aparecem às vezes fora, no mundo; fazem-no, porém, em obediência à vontade de Deus e de sua querida Mãe, para cumprir os deveres de seu estado. Por grandes coisas que façam no exterior e que apareçam, preferem muito mais as que se fazem no interior, em companhia da Santíssima Virgem, porque aí executam a grande obra de sua perfeição, ao lado da qual todas as outras são como brinquedos de criança. Por isso, enquanto que seus irmãos e irmãs trabalham muitas vezes para o exterior com mais entusiasmo, habilidade e sucesso, recebendo os louros e aprovações do mundo, eles sabem, pela luz do Espírito Santo, que há muito mais glória, bem e prazer em permanecer oculto no reconhecimento com Jesus Cristo, seu modelo, numa submissão inteira e perfeita a sua Mãe, do que em realizar, por si próprio, maravilhas naturais e da graça no mundo, como tantos Esaús e réprobos. “Gloria et divitiae in domo eius” Sl 111, 3) – a glória para Deus e as riquezas para os homens encontram-se na casa de Maria.
Senhor Jesus, quão amáveis são vossos tabernáculos! O pardal encontrou uma casa para se alojar, e a rola, um ninho, onde abrigar seus filhotes. Oh! como é feliz o homem que mora na casa de Maria, na qual fizestes, primeiro, a vossa morada! É nesta casa de predestinados que ele de vós somente pede socorro, e em seu coração dispôs subidas e degraus de todas as virtudes, para elevar-se à perfeição neste vale de lágrimas. “Quam dilecta tabernacula...” (Sl 83).
197. 2º Eles amam ternamente e honram em verdade a Santíssima Virgem, como sua boa Mãe e Senhora. Amam-na não só com a boca, mas verdadeiramente; honram-na não só no exterior, mas no fundo do coração; evitam, como Jacó, tudo que pode desagradar-lhe, e praticam com fervor tudo que crêem poder adquirir-lhes sua benevolência. Trazem-lhe e lhe entregam não só dois cabritos como Jacó a Rebeca, mas seu corpo e sua alma, com tudo que do corpo e da alma depende, de que são figura os dois cabritos de Jacó, 1º para que ele os receba como um dom que lhe pertence; 2º para que os sacrifique e faça morrer ao pecado e a si próprios, escorchado-os e despojando-os da própria pele de seu amor-próprio, e para agradar, por este meio, a Jesus, seu filho, que não quer para amigos e discípulos, senão aqueles que estiverem mortos a si mesmos; 3º para que os prepare ao gosto do Pai celeste, e para servir à sua maior glória, que ela conhece melhor que nenhuma outra criatura; 4º para que, por seus cuidados e intercessões, este corpo e esta alma, purificados de toda mancha, bem mortos, bem despojados e bem preparados, sejam um manjar delicado, digno do paladar e da bênção do Pai celeste. Não é o que farão as pessoas predestinadas, que apreciarão e praticarão a consagração perfeita a Jesus Cristo pelas mãos de Maria, como lhes ensinamos, para testemunhar a Jesus e Maria um amor efetivo e corajoso?
Os réprobos dizem que amam a Jesus, que honram Maria, mas não com sua substância76, com os seus haveres, ao ponto de lhes sacrificar seu corpo com os sentidos, sua alma com todas as paixões, como fazem os predestinados.
76) Cf. Prov 3, 9: “Honora Dominum de tua substantia” – Honra o Senhor com os teus haveres.
198. 3º Eles são submissos e obedientes à Santíssima Virgem, como a sua boa Mãe a exemplo de Jesus Cristo, que, dos trinta e três anos que viveu sobre a terra, dedicou trinta a glorificar a Deus seu Pai, por uma perfeita e inteira submissão a sua Mãe Santíssima. A ela obedecem, seguindo com exatidão os seus conselhos, como o pequeno Jacó seguia os de sua mãe, que lhe diz: “Acquiesce consiliis meis” (Gn 27, 8) – Meu filho, segue meus conselhos; aos quais a Santíssima Virgem diz: “Quodcumque dixerit vobis facite” – Fazei tudo o que ele vos disser (Jo 2, 5). Por ter obedecido a sua mãe, Jacó recebeu a bênção, como por milagre, embora por direito natural não devesse recebê-la; porque os servos nas bodas de Cana seguiram o conselho da Santíssima Virgem, foram honrados com o primeiro milagre de Jesus Cristo, que nessa ocasião, a pedido de sua Mãe, converteu a água em vinho. Assim, todos aqueles que até ao fim dos séculos receberem a bênção do Pai celeste, e forem honrados com as maravilhas de Deus, só receberão estas graças em conseqüência de sua perfeita obediência a Maria; os Esaús, ao contrário, perderão sua bênção, por falta de submissão à Santíssima Virgem.
199. 4º Os predestinados têm uma grande confiança na bondade e no poder da Santíssima Virgem; reclamam sem cessar o seu socorro; olham-na como a estrela polar guiando-os a seguro porto; comunicam-lhe, com o coração aberto, suas penas e suas necessidades; acolhem-se à sua misericórdia e doçura para, por sua intercessão, alcançar o perdão de seus pecados, ou para gozar de seus maternais carinhos em suas aflições e contrariedades. Atiram-se até, escondem-se e se perdem dum modo admirável em seu regaço amoroso e virginal, para aí ficarem abrasados de amor, para aí se purificarem das menores manchas, e para aí encontrarem plenamente a Jesus, que aí reside como no mais glorioso dos tronos. Oh! que felicidade! “Não creais, diz o abade Guerrrico, que seja maior felicidade habitar o seio de Abraão que o seio de Maria, pois neste colocou o Senhor o seu trono: Ne credideris maioris esse felicitatis habitare in sinu Abrahae quam in sinu Mariae, cum in eo Dominus possuerit thronum suum”.77
77) Sermo 1 in Assumptione, n. 4.
Os réprobos, ao contrário, põem toda a confiança em si próprios, só comem, como o filho pródigo, o que comem os porcos; como vermes, só se alimentam de terra; e porque amam somente as coisas visíveis e passageiras, como os mundanos, não apareciam as doçuras e suavidades do seio de Maria. Não sentem aquele apoio e aquela confiança que os predestinados sentem pela Santíssima Virgem, sua boa Mãe. Amam miseravelmente sua fome exterior, como diz São Gregório78, porque não querem provar a suavidade que está preparada no próprio íntimo deles e no íntimo de Jesus e de Maria.
78) “Amamus foris miseri famem nostram” (Homil. 36 in Evangel.).
200. 5º Finalmente, os predestinados mantêm-se nos caminhos da Santíssima Virgem, isto é, imitam-na, e nisto eles são verdadeiramente felizes e devotos, trazendo assim o sinal infalível de sua predestinação. Esta boa Mãe lhes diz: “Beati qui custodiunt vias meas” (Prov 8, 32) – Bem-aventurados os que praticam minhas virtudes, e caminham sobre as pegadas de minha vida, com o socorro da divina graça. Eles são felizes neste mundo, durante sua vida, devido à abundância de graças e de doçuras que eu lhes comunico de minha plenitude e com muito mais abundância que aos outros que não me imitam tão esforçadamente; eles são felizes em sua morte, que é doce e tranqüila, e na qual eu os assisto, para os conduzir às alegrias da eternidade; serão finalmente, felizes na eternidade, porque jamais se perdeu algum dos meus servos, que durante a vida tenha imitado fielmente as minhas virtudes.
Os réprobos, ao contrário, são infelizes durante a vida, em sua morte e na eternidade, porque não imitam a Santíssima Virgem em suas virtudes, contentando-se com pertencer a alguma de suas confrarias, com recitar uma ou outra oração em sua honra ou fazer qualquer devoção exterior.
 
Ó Virgem Santíssima, minha boa Mãe, quão felizes são aqueles – eu o repito com transportes de coração – quão felizes são aqueles que, sem se deixar seduzir por uma falsa devoção, guardam fielmente vossos caminhos, vossos conselhos e vossas ordens! Quão infelizes, porém, e malditos, aqueles que, abusando de vossa devoção, não guardam os mandamentos de vosso Filho! “Maledicti omnes qui declinant a mandatis tuis” – Malditos os que se afastam de teus mandamentos (Sl 118, 21).
 
Artigo II
A Santíssima Virgem e os seus escravos por amor
 
201. Eis, em seguida, os caridosos deveres que a Santíssima Virgem cumpre como a melhor das mães, para com seus fiéis servos, que a ela se deram como indiquei, e conforme a figura de Jacó.
 
§ I. Ela os ama.
 
“Ego diligentes me diligo” – Eu amo aqueles que me amam” (Prov 8, 17). Ela os ama 1º porque é sua verdadeira Mãe; ora, uma mãe ama sempre seu filho, o fruto de suas entranhas; 2º ela os ama por reconhecimento, pois que eles efetivamente a amam como sua boa Mãe; 3º ela os ama, porque, sendo predestinados, Deus os ama: “Iacob dilexi, Esau autem odio habui – Amei Jacó, porém aborreci Esaú” (Rm 9, 13); 4º ela os ama porque eles se lhe consagraram, e porque são sua partilha e herança: “In Israel hereditare” (Ecli 24, 13).
202. Ela os ama ternamente, e com mais ternura do que todas as mães juntas. Acumulai, se puderdes, num só coração materno e por um filho único, todo o amor natural que todas as mães deste mundo têm por seus filhos: sem dúvida essa mãe amaria muito esse filho. É verdade, entretanto, que Maria ama ainda mais ternamente seus filhos do que aquela mãe amaria o seu. Ela não os ama somente com afeição, mas também com eficácia. Seu amor por eles é ativo e efetivo, como aquele de Rebeca por Jacob, e muito mais. Eis o que esta boa Mãe, da qual Rebeca era apenas a figura, faz com o fito de alcançar, para seus filhos, a bênção do Pai celestial.
203. 1º Ela espreita, como Rebeca, as ocasiões favoráveis de lhes proporcionar algum bem, de os engrandecer, de os enriquecer. Ela vê claramente em Deus todos os bens e males, as boas e más fortunas, as bênçãos e as maldições divinas, e por isso, já de longe, dispõe as coisas para isentar seus servos de todo mal e cumulá-los de todos os bens; de sorte que, se há um bom proveito para alcançar em Deus, pela fidelidade duma criatura em algum alto emprego, é certo que Maria o conseguirá para algum de seus filhos, e lhe dará a graça de chegar ao fim com fidelidade: “Ipsa procurat negotia nostra”, diz um santo.
204. 2º Ela lhes dá bons conselhos, como Rebeca a Jacó: “Fili mi, acquiesce consiliis meis” – Meu filho, segue meus conselhos” (Gn 27, 8). E, entre outros conselhos, ela lhes sugere levar-lhe dois cabritos, isto é, seu corpo e sua alma, de lhos consagrar para que ela prepare um manjar agradável a Deus, e de fazer tudo que Jesus Cristo, seu Filho, nos ensinou pela palavra e pelo exemplo. Se não é diretamente que lhes dá seus conselhos, fá-lo pelo ministério dos anjos, para os quais constitui o maior prazer e a maior honra obedecer à menor de suas ordens para descer à terra e auxiliar seus fiéis servos.
205. 3º Quando lhe levamos e consagramos nosso corpo e nossa alma com tudo que deles depende, sem nada excetuar, que faz esta boa Mãe? O mesmo que fez, outrora, Rebeca aos dois cabritos que Jacó lhe trouxe: 1º mata-os, tirando-lhes a vida do velho Adão; 2º escorcha-os e despoja da pele natural, das inclinações naturais, do amor próprio, da vontade própria e de todo apego à criatura; 3º purifica-os de toda mancha, sujeira e pecado; 4º prepara-os ao gosto de Deus e para sua maior glória. Ninguém como ela conhece perfeitamente este gosto divino e esta maior glória do Altíssimo, e, portanto, só ela pode, sem enganar-se aprontar e preparar nosso corpo e nossa alma de acordo com esse gosto infinitamente elevado e essa glória infinitamente oculta.
206. 4º Esta boa Mãe, depois de receber a oferenda perfeita que lhe fizemos de nós mesmos e de nossos próprios méritos e satisfações, pela devoção de que falei, depois de nos ter despojado de nossos antigos hábitos, limpa-nos e nos torna dignos de aparecer diante de nosso Pai celeste. 1º Ela nos cobre com as vestes limpas, novas, preciosas e perfumadas de Esaú, o primogênito, isto é, de Jesus Cristo seu Filho, daquelas vestes que ela conserva em sua casa, ou, por outra, em seu poder, pois que é a tesoureira, a dispensadora universal dos méritos e virtudes de seu Filho Jesus Cristo, dons que ela dispensa e comunica a quem quer, quando quer, como quer, e em quanto quer, como já vimos acima (cf. nn. 25 e 141). 2º Ela rodeia o pescoço e as mãos de seus servos com o pelo dos carneiros mortos e escorchados, quer dizer, ela os reveste dos méritos e do valor de suas próprias ações. Ela mata e mortifica, em verdade, tudo que eles têm de impuro e imperfeito em suas pessoas; mas não perde nem dissipa o bem que neles a graça já realizou; pelo contrário, guarda-o e aumenta-o para lhes ornar e fortalecer o pescoço e as mãos, isto é, para que eles tenham força para carregar o jugo do Senhor, que se carrega ao pescoço, e para fazerem grandes coisas que redundem na glória de Deus e na salvação de seus irmãos. 3º Ela põe um novo perfume e uma nova graça nessas vestes e ornamentos, pelo contato de suas próprias vestes: seus méritos e suas virtudes, que ela, ao morrer, lhes legou em testamento, como diz uma santa religiosa do século 17, morta em odor de santidade, e que o soube por revelação; de modo que todos os seus servidores, seus fiéis servos e escravos ficam duplamente vestidos: com as vestes dela e com as de seu Filho: “Omnes domestici eius vestiti sunt duplicibus” (Prov 31, 21). Por isso eles não têm que recear o frio de Jesus Cristo, branco como a neve, que os réprobos, completamente nus e despojados dos méritos de Jesus Cristo e da Santíssima Virgem, não poderão suportar.
207. 5º Ela consegue-lhes, enfim, a bênção do Pai celeste, se bem que eles sejam os segundos, os filhos adotivos, e, portanto, não devessem recebê-la. Com essas roupas novas, preciosas e odorosas, e com seu corpo e alma bem preparados e dispostos, eles se aproximam confiantes do leito de repouso do Pai celeste. Este os ouve e os reconhece pela voz, a voz do pecador; toca-lhes as mãos cobertas de pêlos; aspira o perfume que de suas vestes se desprende; come alegremente o que Maria lhe preparou; e neles reconhecendo os méritos e o bom odor de seu Filho e de sua Mãe Santíssima: 1º dá-lhes sua dupla bênção, bênção do orvalho do céu: “De rore caeli” (Gn 27, 28), isto é, da graça divina que é a semente da glória: “Benedixit nos in omni benedictione spirituali in Christo Iesu” (Ef 1, 3: Deus nos abençoou com toda a bênção espiritual em Cristo Jesus); bênção da fertilidade da terra: “De pinguetudine terrae” (Gn 27, 28), em outras palavras, que este bom Pai lhes dá seu pão cotidiano e uma abundância suficiente de bens deste mundo; 2º fá-los senhores de seus outros irmãos, os reprovados, embora esta primazia nem sempre transpareça neste mundo que passa num instante, e no qual dominam muitas vezes os reprovados: “Peccatores effabuntur et gloriabuntur... (Sl 93, 3, 4), Vidi impium superexaltatum e elevatum” (Sl 36, 35); essa primazia é, no entanto, verdadeira e será manifestada por toda a eternidade, no outro mundo, onde os justos, como diz o Espírito Santo, dominarão e comandarão as nações: “Dominabuntur populis” (Sb 3, 8); 3º sua majestade, não contente de abençoá-los em suas pessoas e em seus bens, abençoa ainda todos os que eles abençoarem, e amaldiçoa todos os que os amaldiçoarem e perseguirem.
 
§ II. Ela os mantém.
 
208. O segundo dever de caridade que a Santíssima Virgem exerce para com seus fiéis servos é provê-los de tudo para o corpo e para a alma. Ela lhes fornece as vestes duplas, como acabamos de ver; dá-lhes de comer os manjares mais finos da mesa de Deus; dá-lhes o pão da vida que ela formou: “A generationibus meis implemini” (Ecli 24, 26): “Meus queridos filhos, lhes diz ela, sob o nome da Sabedoria, enchei-vos de meus frutos, isto é, de Jesus, o fruto de vida que eu pus no mundo para vós. – “Venite, comedite panem meum et bibite vinum quod miscui vobis” (Prov 9, 5); “comedite et bibite, et inebriamini, carissimi” (Cant 5, 1): Vinde, lhes repete, comei do meu pão, que é Jesus, e bebei do vinho de seu amor, que para vós preparei com o leite de meus seios. E como é a tesoureira e a dispensadora dos dons e das graças do Altíssimo, ela toma uma boa porção, a melhor, para alimentar e sustentar seus filhos e servos. Eles são fortalecidos com o pão vivo, embriagados com o vinho que gera virgens (cf. Zc 9, 17); são levados ao seio: “ad ubera portamini” (Is 66, 12); e têm tanta facilidade em carregar o jugo de Jesus Cristo, que quase não lhe sentem o peso, graças ao óleo da devoção com que ela o faz apodrecer: “Iugum eorum computrescet a facie olei” (Is 10, 27).
 
§ III. Ela os conduz.
 
209. O terceiro bem que a Santíssima Virgem faz a seus fiéis servos é conduzi-los e dirigi-los conforme a vontade de seu Filho. Rebeca conduzia o pequeno Jacó e de vez em quando lhe dava bons conselhos, e deu-lhos tanto para ele atrair a bênção de Isaac, como para subtrair-se à fúria de Esaú. Maria, a estrela do mar, guia todos os seus fiéis servos a bom porto; mostra-lhes os caminhos da vida eterna; desvia-os dos passos perigosos; leva-os pela mão nas sendas da justiça; sustém-nos quando estão prestes a cair; levanta-os quando caíram; repreende-os, como mãe caridosa, quando comentem alguma falta; e, até, às vezes, os castiga amorosamente. Um filho que obedece a Maria, pode acaso errar o caminho que leva à eternidade? “Ipsam sequens, non devias: Seguindo-a, não vos extraviareis”, diz São Bernardo. Não temais que um verdadeiro filho de Maria se deixe enganar pelo demônio e venha a cair em alguma heresia formal. Onde se manifesta a mão condutora de Maria, aí não se encontram nem o espírito maligno com suas ilusões, nem os hereges com seus sofismas: “Ipsa tenente, non corruis”.79
79) Palavras de São Bernardo, citadas e comentadas mais acima, n. 174.
 
§ IV. Ela os defende e protege.
 
210. O quarto favor que a Santíssima Virgem presta a seus filhos e fiéis servos é defendê-los e protegê-los de seus inimigos. Rebeca, por seus cuidados e por sua habilidade livrou Jacó dos perigos que o ameaçavam, e particularmente da morte que lhe jurara Esaú, e que, no auge da raiva e inveja que o dominavam, ele teria levado a termo, como outrora Caim a seu irmão Abel. Maria, a Mãe misericordiosa dos predestinados, abriga-os sob as asas de sua proteção, como uma galinha aos pintinhos. Ela lhes fala, abaixa-se até a eles, é condescendente para com suas fraquezas, protege-os contra as garras do gavião e do abutre; acompanha-os como um exército em linha de batalha: “ut castrorum acies ordinata” (Ct 6, 3). Pode um homem, garantido por um exército de cem mil soldados, ter receio de seus inimigos? Menos ainda há de recear um servo fiel de Maria, rodeado que está da proteção e força de sua Mãe Santíssima. Esta Mãe e Princesa poderosa enviaria antes batalhões de milhares de anjos em socorro de um só de seus servos, para que se não dissesse que um servo fiel de Maria, que a ela se confiou, sucumbiu à malícia, ao número e à força do inimigo.
 
§ V. Ela intercede por eles.
 
211. O quinto, enfim, e o maior bem, que a amabilíssima Maria proporciona a seus fiéis devotos, é interceder por eles junto de seu Filho, apaziguá-lo por suas preces, uni-los a ele por um forte elo, e para ele os conservar.
Rebeca mandou a Jacó que se aproximasse do leito de Isaac; e o ancião tateou as mãos e os braços do filho, abraçou-o e beijou-o com alegria, mostrando-se contente e satisfeito com o acepipe que Jacó lhe apresentava. E ao aspirar com extrema satisfação o perfume que se evolava das vestes de Esaú, exclamou: “Ecce odor filii mei sicut odor agri pleni, cui benedixit Dominus: Eis que o cheiro de meu filho é como o cheiro de um campo florido que o Senhor abençoou” (Gn 27, 27). Este campo florido, cujo odor encanta o coração do pai, outro não é que o odor das virtudes e dos méritos de Maria, que é um campo cheio de graça, no qual Deus Pai semeou, qual grão de trigo dos eleitos, o seu Filho único.
Oh! benvindo é, junto de Jesus Cristo, Pai do futuro século, um filho que rescende o bom odor de Maria. E quão pronta e perfeitamente lhe fica unido, já o demonstramos longamente.
212. Além disso, depois de cumular de favores seus filhos e servos fiéis, Maria Santíssima lhes obtém a bênção do Pai celestial e a união com Jesus Cristo, e, mais, conserva-os em Jesus Cristo e Jesus Cristo neles. Ela os guarda e por eles vela constantemente, para que não percam a graça de Deus e não caiam nas armadilhas do inimigo: “In plenitudine sanctos detinet: Detém os santos em sua plenitude”80, e ajuda-os a perseverar até ao fim, como já vimos.
80) Palavras de São Boaventura já citadas e comentadas (n. 174).
Aí está a explicação desta grande e antiga figura da predestinação e da condenação, figura tão desconhecida e tão cheia de mistérios.
 
Capítulo VII
Efeitos maravilhosos que esta devoção produz numa alma que lhe é fiel
 
213. Meu querido irmão, convencei-vos de que, se vos tornardes fiel às práticas interiores e exteriores desta devoção, que vos indico em seguida:
 
Artigo I
Conhecimento e desprezo de si mesmo
 
1º Pela luz que o Espírito Santo vos dará por intermédio de Maria, sua querida esposa, conhecereis vosso fundo mau, vossa corrupção e vossa incapacidade para todo bem, e, em conseqüência deste conhecimento, vos desprezareis, e será com horror que pensareis em vós mesmo. Considerar-vos-eis como uma lesma asquerosa que tudo estraga com sua baba, como um sapo repugnante que tudo envenena com sua peçonha, ou como a serpente traiçoeira que só busca enganar. A humilde Maria vos dará, enfim, parte de sua profunda humildade, com que vos desprezareis a vós mesmo, sem desprezar pessoa alguma, e gostareis até de ser desprezado.
 
Artigo II
Participação da fé de Maria
 
214. 2º A Santíssima Virgem vos dará uma parte na fé, a maior que já houve na terra, maior que a de todos os patriarcas, profetas, apóstolos e todos os santos. Agora, reinando nos céus, ela já não tem esta fé, pois vê claramente todas as coisas em Deus, pela luz da glória. Com assentimento do Altíssimo, ela, entretanto, não a perdeu ao entrar na glória; guardou-a para seus fiéis servos e servas na Igreja militante. Quanto mais, portanto, ganhardes a benevolência desta Princesa e Virgem fiel, tanto mais profunda fé tereis em toda a vossa conduta: uma fé pura, que vos levará à despreocupação por tudo que é sensível e extraordinário; uma fé viva e animada pela caridade que fará com que vossas ações sejam motivadas por puro amor; uma fé firme e inquebrantável como um rochedo, que vos manterá firme e contente no meio das tempestades e tormentas; uma fé ativa e penetrante que, semelhante a uma chave misteriosa, vos dará entrada em todos os mistérios de Jesus Cristo, nos novíssimos do homem e no coração do próprio Deus; fé corajosa que vos fará empreender sem hesitações, e realizar grandes coisas para Deus e a salvação das almas; fé, finalmente, que será vosso fanal luminoso, vossa via divina, vosso tesouro escondido da divina Sabedoria e vossa arma invencível, da qual vos servireis para aclarar os que jazem nas trevas e nas sombras da morte, para abrasar os tíbios e os que necessitam do ouro candente da caridade, para dar vida aos que estão mortos pelo pecado, para tocar e comover, por vossas palavras doces e poderosas, os corações de mármore e derrubar os cedros do Líbano, e para, enfim, resistir ao demônio e a todos os inimigos da salvação.
 
Artigo III
Graça do puro amor
 
215. 3º Esta Mãe do amor formoso (Ecli 24, 24) aliviará vosso coração de todo escrúpulo e de todo temor servil; ela o abrirá e alargará para correr pelo caminho dos mandamentos de seu Filho (cf. Sl 118, 32), com a santa liberdade dos filhos de Deus, e para nele introduzir o puro amor, de que ela possui o tesouro; de tal modo que não mais vos conduzireis, como o fizestes até aqui, pelo receio ao Deus de caridade, mas pelo puro amor, unicamente. Passareis a olhá-lo como vosso bondoso Pai, tratando de agradar-lhe incessantemente; com ele conversareis confidentemente, à semelhança de um filho com seu pai. Se, por acaso, o ofenderdes, humilhar-vos-eis em continente diante dele, pedir-lhe-eis perdão humildemente, lhe estendereis simplesmente a mão, e vos levantareis amorosamente, sem perturbação nem inquietação, se sem desfalecimentos continuareis a caminhar para ele.
 
Artigo IV
Grande confiança em Deus e em Maria
 
216. 4º A Santíssima Virgem vos encherá de grande confiança em Deus e nela: 1º porque não vos aproximareis mais de Jesus Cristo por vós mesmo, mas sempre por intermédio desta bondosa Mãe; 2º porque, tendo lhe dado todos os vossos méritos, graças e satisfações, para que deles disponha à sua vontade, ela vos comunicará suas virtudes e vos revestirá de seus méritos, de sorte que podereis dizer confiantemente a Deus: “Eis Maria, vossa serva: faça-se em mim conforme a vossa palavra: Ecce ancilla Domini; Fiat mihi secundum verbum tuum” (Lc 1, 38); 3º porque, desde que vos destes a ela inteiramente, de corpo e alma, ela, que é liberal com os liberais, e mais liberal que os próprios liberais, dar-se-á a vós em troca, e isto de um modo maravilhoso, mas verdadeiro; assim podereis dizer-lhe ousadamente: “Tuus sum ego, salvum me fac! – Eu vos pertenço, Santíssima Virgem, salvai-me!” (Sl 118, 94) ou, como já disse (cf. nº 179), com o discípulo amado: “Accepi te in mea” – eu vos tomei, Mãe Santíssima, como todo o meu bem. Podereis ainda dizer com São Boaventura: “Ecce Domina salvatrix mea, fiducialiter agam, et non timebo, quia fortitudo mea, et laus mea in Domino es tu...”81 e em outro lugar: “Tuus totus ego sum, et omnia mea tua sunt; o Virgo gloriosa, super omnia benedicta, ponam te ut signaculum super cor meum, quia fortis est ut mors dilectio tua82 – Minha querida Senhora e Salvadora, agirei com confiança e não temerei porque sois minha força e meu louvor no Senhor... Sou todo vosso, e tudo que tenho vos pertence; ó gloriosa Virgem, bendita sobre todas as coisas criadas, que eu vos ponha como uma marca sobre meu coração, pois vossa dileção é forte como a morte!” Podereis dizer a Deus com os sentimentos do profeta: “Domine, non est exaltatum cor meum, neque elati sunt oculi mei; neque ambulavi in magnis, neque in mirabilibus super me; si non humiliter sentiebam, sed exaltavi animam meam; sicut ablactatus est super matre sua, ita retributio in anima mea (Sl 130, 1-2) – Senhor, nem meu coração nem meus olhos têm  motivo para se elevar e ensoberbecer, nem de buscar coisas grandes e maravilhosas; e mesmo assim, ainda não sou humilde; mas elevei e encorajei minha alma pela confiança; sou como uma criança, afastada dos prazeres da terra e apoiada ao seio de minha mãe; e é neste seio que sou cumulado de bens. 4º O que aumenta ainda vossa confiança nela é que, tendo lhe dado em depósito tudo o que tendes de bom para dar ou guardar, confiareis menos em vós e muito mais nela, que é vosso tesouro. Oh! que confiança e consolação para uma alma poder chamar também seu o tesouro de Deus, onde Deus depositou o que tem de mais precioso! “Ipsa est thesaurus Domini – Ela é, diz um santo, o tesouro do Senhor”.83
81) Psalter. maius B. V., Cant. instar Is 12, 2.
82) Psalter. Maius B. V., Cant. instar Ex 15.
83) Idiota (In contemplatione B. M. V.).
 
Artigo V
Comunicação da alma e do espírito de Maria
 
217. 5º A alma da Santíssima Virgem se comunicará a vós para glorificar o Senhor; seu espírito tomará o lugar do vosso para regozijar-se em Deus, contanto que pratiqueis fielmente esta devoção. “Sit in singulis anima Mariae, ut magnificet Dominum; sit in singulis spiritus Mariae, ut exultet in Deo84 – Que a alma de Maria esteja em cada um para aí glorificar o Senhor; que o espírito de Maria esteja em cada um para aí regozijar-se em Deus”. Ah! quando virá este tempo feliz em que Maria será estabelecida Senhora e Soberana nos corações, para submetê-los plenamente ao império de seu grande e único Jesus? Quando chegará o dia em que as almas respirarão Maria, como o corpo respira o ar? Então, coisas maravilhosas acontecerão neste mundo, onde o Espírito Santo, encontrando sua querida Esposa como que reproduzida nas almas, a elas descerá abundantemente, enchendo-as de seus dons, particularmente do dom da sabedoria, a fim de operar maravilhas de graça. Meu caro irmão, quando chegará esse tempo feliz, esse século de Maria, em que inúmeras almas escolhidas, perdendo-se no abismo de seu interior, se tornarão cópias vivas de Maria, para amar e glorificar Jesus Cristo? Esse tempo só chegará quando se conhecer e praticar a devoção que ensino, “Ut adveniat regnum tuum, adveniat regnum Mariae”.
84) S. Ambrósio (Expositio in Lc 1. III, n. 26).
 
Artigo VI
Transformação das almas em Maria à imagem de Jesus Cristo
 
218. 6 º Se Maria, que é a árvore da vida, for bem cultivada em nossa alma pela fidelidade às práticas desta devoção, ela dará fruto em seu tempo; e seu fruto não é outro senão Jesus Cristo. Vejo tantos devotos e devotas que buscam Jesus Cristo, estes por uma via e uma prática, aqueles por outra; e muitas vezes depois de muito labutar durante a noite, podem dizer: “Per totam noctem laborantes, nihi cepimus – Trabalhamos a noite inteira, nada apanhamos” (Lc 5, 5). E pode-se responder-lhes: “Laborastis multum, et intulistis parum – muito trabalhastes e pouco ganhastes”.85 Jesus Cristo está ainda muito fraco em vós. Mas, pelo caminho imaculado de Maria e por esta prática divina que ensino, trabalha-se durante o dia, trabalha-se num lugar santo, trabalha-se pouco. Em Maria não há noite, pois ela jamais pecou, nem teve sequer a sombra dum pecado. Maria é um lugar santo, o Santo dos santos, em que se formam e modelam os santos.
85) Ag 1, 6 (O texto exato diz “Seminastis multum...”).
219. Notai, se vos apraz, que eu digo que os santos são moldados por Maria. Há grande diferença entre executar uma figura em relevo, a martelo e a cinzel, e executá-la por molde. Os escultores e estatuários têm de esforçar-se muito para fazer uma figura da primeira maneira, e gastam muito tempo; mas, da segunda maneira, trabalham pouco e terminam em pouco tempo. S. Agostinho chama a Santíssima Virgem “forma Dei”, o molde de Deus. “Si formam Dei te appellem, digna exsistis”85: o molde próprio para formar e moldar deuses. Aquele que é lançado no molde divino fica em breve formado e moldado em Jesus Cristo, e Jesus Cristo nele: com pouca despesa e em pouco tempo, ele se tornará deus, pois foi lançado no mesmo molde que formou um Deus.
85) Sermo 208 (inter opera S. Augustini): “Sois digna de ser chamada o molde de Deus”.
220. Parece-me que posso muito bem comparar esses diretores e pessoas devotas que pretendem formar Jesus Cristo em si mesmos ou nos outros, por meio de práticas diferentes destas, a escultores que, depositando toda a confiança na própria perícia, conhecimento e arte, dão uma infinidade de marteladas e embotam o cinzel numa pedra dura, ou numa madeira áspera, para fazer a imagem de Jesus Cristo; e às vezes não conseguem dar expressão natural a Jesus Cristo, ou por falta de conhecimentos ou devido a algum golpe desastrado que prejudica toda a obra. Aqueles, porém, que abraçam este segredo da graça que lhes apresento, eu os comparo a fundidores e moldadores que, tendo encontrado o belo molde de Maria, no qual Jesus Cristo foi natural e divinamente formado, sem se fiar na própria habilidade, mas unicamente na eficiência do molde, lançam-se e perdem-se em Maria para se tornarem o retrato natural de Jesus Cristo.
221. Bela e verdadeira comparação! Quem a compreenderá, porém? Desejo que sejais vós, querido irmão. Mas lembrai-vos que só se lança no molde o que está fundido e líquido, isto é, que é mister destruir e fundir em vós o velho Adão, para que venha a ser o novo em Maria.
 
Artigo VII
A maior glória de Jesus Cristo
 
222. 7º Por esta prática, fielmente observada, dareis a Jesus Cristo mais glória em um mês, que por qualquer outra, embora mais difícil, em muitos anos. – Eis as razões do que afirmo:
1º Porque, fazendo vossas ações pela Santíssima Virgem, como esta prática ensina, abandonais vossas próprias intenções e operações, ainda que boas e conhecidas, para vos perder, por assim dizer, nas da Santíssima Virgem, embora as desconheçais; e por aí entrais a participar da sublimidade de suas intenções, que foram tão puras, que ela deu mais glória a Deus, pela menor das suas ações, por exemplo, fiando na sua roca, dando um ponto de agulha, do que um São Lourenço estendido na grelha, por seu cruel martírio, e mesmo que todos os santos por suas mais heróicas ações; pelo que, durante sua vida neste mundo, ela conquistou tal soma inefável de graças e méritos que se contariam antes as estrelas do firmamento, as gotas d’água do mar e os grãos de areia das praias; e ela deu mais glória a Deus que todos os anjos e santos reunidos e como eles jamais deram nem poderão dar. Ó prodígio de Maria! vós só podeis realizar prodígios de graça nas almas que querem de boa mente abismar-se em vós.
223. 2º Porque uma alma, por esta prática, considerando nada tudo o que pensa ou faz por si mesma, e pondo todo o seu apoio e complacência nas disposições de Maria, para aproximar-se de Jesus Cristo e até para falar-lhe, pratica mais humildade que as almas que agem por si mesmas, que se apóiam e comprazem nas próprias disposições. Conseqüentemente, ela glorifica mais altamente a Deus, que só é glorificado perfeitamente pelos humildes e pequenos de coração.
 
224. 3º Porque a Santíssima Virgem, querendo, por sua grande caridade, receber em suas mãos virginais o presente de nossas ações, dá-lhes uma beleza e brilho admiráveis; ela mesma as oferece a Jesus Cristo, e Nosso Senhor é assim mais glorificado que se nós lhas oferecêssemos por nossas mãos criminosas.
225. 4º Enfim, porque nunca pensais em Maria, sem que ela, em vosso lugar, pense em Deus. Nunca a louvais nem honrais, sem que ela convosco louve e honre a Deus. Maria está toda em conexão com Deus, e com toda a propriedade eu a chamaria a relação de Deus, que só existe em referência a Deus, o eco de Deus, que só diz e repete Deus. Santa Isabel louvou Maria e chamou-a bem-aventurada, porque ela creu, e Maria, o eco fiel de Deus, entoou: “Magnificat anima mea Dominum – Minha alma glorifica o Senhor” (Lc 1, 46). O que fez nessa ocasião, Maria o faz todos os dias; quando a louvamos, amamos, honramos ou lhe damos algo, Deus é louvado, amado, honrado, e recebe por Maria e em Maria.





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